Educação popular e movimentos populares: emancipação e mudança de cultura política através de participação e autogestão[1] Pretendemos com este trabalho contribuir para a investigação do papel desempenhado hoje pela educação popular nos processos de militância e participação nos movimentos populares, e sua possível repercussão sobre a cultura política dos sujeitos pertencentes aos coletivos estudados. Procuramos para isso identificar a importância atribuída à educação pelos movimentos populares estudados em suas propostas de atuação, as instâncias em que são desenvolvidas as atividades de educação/formação, quem são e como atuam os agentes educadores e, finalmente, qual a percepção desse processo por parte dos participantes das bases dos movimentos. Escolhemos como estudos de caso o Assentamento Comuna da Terra Dom Tomás Balduíno e o Mutirão Paulo Freire, comunidades da base do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e da União dos Movimentos de Moradia de São Paulo situadas na região da Grande São Paulo. Para a análise sobre as opções metodológicas adotadas, inserimos na discussão os pressupostos políticos pedagógicos de atuação dos agentes educadores do Movimento de Economia Solidária. Palavras-chave: educação popular, movimentos populares, autogestão, emancipação, participação política, cultura política. “Cantamos porque llueve sobre el surco (Mario Benedetti – Por que cantamos)Um pouco de história (essa história não começa onde eu começo!)A construção por auto-organização popular é um fenômeno presente historicamente no Brasil, tanto nas zonas rurais quanto nas periferias urbanas, diante dos baixos salários, dos altos aluguéis e da especulação imobiliária. Datam de 1940 os primeiros núcleos de ocupações irregulares em São Paulo (Bonduki, 1998), frutos da urbanização e da falta de alternativas habitacionais, e com eles as experiências domingueiras de construção da moradia por ajuda mútua. Naquela mesma época também se registravam atividades de produção agrícola coletiva no interior do estado de São Paulo (Cândido, 1998) além de ocupações coletivas de terra (Oliveira, 1988). A demanda por terra e por moradia nas últimas três décadas fez surgir, alem de posses, favelas, cortiços e loteamentos clandestinos, movimentos populares organizados. A atuação destes, por sua vez, resultou na criação de instituições assessoras e em políticas de reforma agrária e de habitação de interesse social. Por outro lado, e ao mesmo tempo, a crise no mundo do trabalho gerou reações políticas: populares, quando trabalhadores e trabalhadoras sem perspectivas de ingresso ou reingresso no mercado de trabalho tomam para si a tarefa de se organizar sob a forma de empreendimentos coletivos; dos intelectuais, com a criação de núcleos nas universidades que vêm apoiando iniciativas de trabalho e produção coletivos e desenvolvendo estudos sobre cooperativismo e economia solidária; e do poder público, sob a forma de programas voltados para a capacitação ou requalificação de milhares de pessoas desempregadas para a geração de trabalho e renda de forma associada. Num primeiro momento, nos perguntamos se as conquistas destes movimentos extrapolam as demandas iniciais por habitação, terra e trabalho. Acreditamos que sim, que os processos de organização popular historicamente geraram novas formas de relações sociais entre seus participantes. Descompasso entre “sujeitos” e “objetos” (a academia se afasta da história)Em sua apresentação na 13ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Educação, em 1990, a professora Maria da Glória Gohn apontava para uma tendência ao distanciamento entre os estudos sobre as temáticas da educação popular e dos movimentos populares. Os estudos em educação dos anos setenta, analisando as experiências de educação popular desenvolvidas por diferentes agentes e categorizando-as segundo seu caráter libertador ou integrador junto às populações teriam sido gradativamente substituídos nos anos oitenta pelos estudos das ciências sociais, que focalizavam os movimentos populares, sua estrutura, funcionamento e relevância, sem no entanto voltar a devida atenção para os aspectos pedagógicos dos processos de militância e participação política – a aprendizagem gerada pelo contato com instâncias do poder público, pelo diálogo estabelecido com profissionais de diferentes áreas das assessorias técnicas, pelo exercício repetido de práticas políticas participativas, pelo convívio com os companheiros e companheiras. Segundo Gohn, a era que se seguiria assistiria a uma estagnação da produção teórica sobre aqueles temas na mesma proporção em que se esvaziava a força do coletivo. A crise dos movimentos populares estava dada, fosse pela ausência de projetos políticos próprios, pela dependência de agentes externos (assessorias, ongs, universidades, igreja, partidos políticos) ou pelo acolhimento das demandas populares pelo Estado. O saldo positivo de todo o processo da militância popular e intelectual existente até então, teria sido o seu aspecto educativo, de construção de uma cultura política fundamentada na participação. Quase duas décadas depois, seguimos concordando com a avaliação de que as práticas de educação popular nos movimentos populares tiveram o mérito de contribuir para conquistas em relação à cidadania da população como um todo, o que não impediu um refluxo da produção acadêmica sobre o tema. No entanto, alguns movimentos populares não se extinguiram, passaram por reformulações e seguem atraindo novos sujeitos para engrossar as fileiras da militância; sinal claro de que a cultura política fundamentada na participação popular continua gerando frutos. Impressões sobre a vida na nossa metrópole – que hoje sorri e amanhã nos devoraNessa cidade, nos últimos tempos, vi de tudo um pouco. Vi gente querendo abrir a cabeça das outras para ‘costurar idéias dentro’. Vi gente querendo mandar nas outras para conseguir o que acreditava ser melhor para todos. Mas vi também muita gente brigar junto, ombro a ombro, por seus direitos até mesmo contra a força bruta, e discutir em roda até cansar para decidir por consenso o que fazer. Principalmente, vi o povo se juntar para conseguir o que queria, precisava e acreditava. E depois? O que será que acontece? Como pode ser que em alguns cantos, depois de ‘comer tanto sal junto’ cada um tenha entrado para sua casa e fechado a porta, enquanto em outras histórias o pessoal ‘tomou gosto pela coisa’ e continua participando de espaços de discussão e decisão coletivas até hoje em dia? As incursões pelos estudos e sobretudo, pelas experiências de educação popular, participação política e autogestão me levam a um palpite – de que a experiência por si mesma pode marcar a trajetória de cada um dos indivíduos, mas é a reflexão coletiva que traz consigo a possibilidade de mudança no modo de viver e de pensar o mundo de um grupo ou comunidade. Quando a cidade virou campoNa pesquisa de mestrado desenvolvida ao longo dos últimos anos elaboramos uma reflexão sobre processos de educação popular na base de movimentos populares de abrangência nacional. O foco inicial está em células-base de dois dos movimentos: o Mutirão Paulo Freire, do Movimento Sem Terra Leste 1, filiado à União de Movimentos de Moradia (UMM), e o Assentamento Comuna da Terra Dom Tomás Balduíno, da Regional Grande São Paulo do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ambos acompanhados pela Assessoria Técnica USINA – centro de trabalhos para o ambiente habitado. Após a apresentação de um breve histórico dos movimentos populares escolhidos para esta investigação e o levantamento de documentos e depoimentos de pessoas de referência nos respectivos setores de formação, avançamos para a etapa de buscar semelhanças e singularidades entre os processos, na verificação de continuidades e descontinuidades entre os pressupostos político-pedagógicos e a atuação dos agentes educadores junto aos demais sujeitos da educação popular, a partir da percepção por parte dos sujeitos que vivem a experiência dos processos coletivos de luta e de militância. Em seguida, recorremos aos pressupostos políticos e pedagógicos que orientam a atuação dos agentes educadores também no Movimento de Economia Solidária, para ampliar nosso repertório na discussão sobre as opções metodológicas adotadas pelos movimentos populares e sua coerência com os pressupostos políticos e pedagógicos expressos por documentos e por suas lideranças/agentes educadores. As duas ações básicas da pesquisa foram os estudos bibliográficos e a pesquisa em campo, cuja metodologia se pautou fundamentalmente na observação participante. Realizei visitas a cada uma das comunidades no período entre março de 2005 e janeiro de 2008. Nos dois primeiros grupos, tive oportunidade de observar a atuação dos agentes educadores, contrastando-as com os pressupostos político-pedagógicos dos respectivos movimentos a que pertencem, e realizei entrevistas com homens e mulheres mutirantes e assentados. A pesquisa de campo foi estruturada da seguinte forma:
Ao abordar tais atividades em meu contexto de pesquisa, interessava observar o potencial formativo nelas presentes; entendido como possibilidade de concretização das propostas dos movimentos estudados. Mas também interessava observar as situações de sociabilidade que ocorrem nessas circunstâncias – o modo de atuação específico dos sujeitos, que emerge da dinâmica social existente antes e depois da atividadepropriamente dita. Durante as visitas de campo, tive oportunidade de acompanhar também outras atividades do MST e da UMM: o Congresso Nacional de 25 anos do MST, o Encontro da Regional Grande São Paulo; o Encontro dos 20 anos da UMM, o Seminário do Movimento Leste 1; e posteriormente, do Movimento de Economia Solidária – o Seminário Nacional e a Plenária Estadual de Economia Solidária. O elemento relevante nesses diferentes eventos é a dinâmica da organização, que reflete uma cultura política dos grupos e uma ordenação simbólica que pode ser observada também nas atividades desenvolvidas nas células base dos movimentos estudados – nestes casos, o assentamento e o mutirão. Nas diferentes ocasiões, percebi a necessidade de explicitar aos participantes com quem tive a oportunidade de conversar o intuito de trazer a público as descrições da dinâmica de funcionamento daqueles espaços. Não houve qualquer tipo de questionamento quanto à utilização das informações, desde que não sejam mencionadas deliberações sobre estratégias políticas de ação. A última etapa da coleta de dados consistiu na realização de entrevistas individuais e coletivas com participantes dos diferentes movimentos. O roteiro dessas entrevistas buscou captar as representações desses sujeitos sobre sua história, seu papel no movimento, a importância da trajetória de militância em sua vida e sua percepção sobre mudanças efetivas no seu modo de pensar e agir a partir dessa mesma trajetória. Houve também o interesse por parte dos entrevistados em discutir, para além de sua experiência, suas visões sobre o processo de formação nos movimentos. Além do registro dos acontecimentos em diário de campo realizamos o registro fotográfico para memória de todo o processo. As entrevistas realizadas foram gravadas mediante autorização dos entrevistados. Utilizamos ainda as fichas de cadastro atualizadas dos mutirantes e assentados para a caracterização dos grupos estudados. Para subsidiar a realização da pesquisa de campo contamos com a reflexão acumulada por todos os intelectuais educadores que contribuíram com as experiências de pesquisa participante organizadas por Carlos Rodrigues Brandão (em 1983 e 1987), além da orientação cuidadosa do professor Celso Beisiegel. A análise dos dados deu-se a partir de:
A pedagogia em movimentoOs encontros estaduais aos quais estivemos presentes foram eventos grandes, que reuniram centenas de pessoas, com diferentes níveis de envolvimento com a militância e de formação política. Se analisarmos essa opção metodológica apenas sob o ponto de vista do aprofundamento nos conteúdos propostos como temas a serem estudados, certamente as expectativas iniciais expressas pelos movimentos seriam frustradas. Se, por outro lado, tivermos um olhar que privilegia não a aquisição de saberes acumulados, mas a vivência da estrutura organizativa e a possibilidade de estar em contato com muitas pessoas que não são conhecidas, mas que têm entre si uma identidade pelo pertencimento a uma luta comum, então veremos que há um objetivo subjacente que está sendo atingido, que é o fortalecimento dessa mesma identidade coletiva. Com isso não queremos dizer que os conteúdos abordados nos encontros não são de maneira alguma trabalhados por aqueles com menos tempo ou experiência de participação no movimento, pelo contrário; tomar contato com lideranças mais antigas, escutar palavras que já fazem parte de um novo léxico com outros sotaques e ter a oportunidade de comentar diferentes pontos de vista sobre os assuntos que estão relacionados com um projeto político maior que tem conseqüências nas suas próprias vidas são sutilezas que vão alimentando e enriquecendo a visão de mundo de todos os participantes. A postura adotada pelos coordenadores dos núcleos e grupos de trabalho que observamos foi extremamente cuidadosa e coerente com as orientações da organização, demonstrando disponibilidade para o diálogo e estimulando os participantes a expressar suas opiniões e questionamentos; foram raríssimos os casos em houve por assim dizer um monopólio do uso da palavra, em geral para prestar esclarecimentos e não para defender determinados posicionamentos. Acompanhamos os trabalhos das comissões de sistematização com as pessoas responsáveis pela relatoria, tarefa desempenhada minuciosamente para garantir que todas as discussões fossem contempladas. A organização geral de ambos os encontros é exemplar do ponto de vista da alimentação e dos alojamentos; se pudemos observar um descompasso entre o planejado e o executado, isto se deu especificamente com relação à ciranda, no MST, e à creche, na UMM, equipes destacadas para ficar com as crianças presentes; que eram muitas, muitas mais do que o esperado. Não podemos deixar de mencionar a importância dos momentos de festa; criar um ambiente educador e militante com alegria realimenta de esperanças o coração de quem luta por uma vida e um mundo melhores. Durante os encontros regionais da Leste 1 e da Regional Grande São Paulo, o clima instaurado é como o da preparação para uma longa jornada. As pessoas que participam, membros da coordenação de grupos e famílias destacadas para representar seu espaço, têm um envolvimento existencial com as causas dos movimentos a que pertencem; a discussão e definição de estratégias a partir de uma apreensão da realidade, da interpretação política do que está acontecendo no espaço em que atua, no movimento e no mundo, pressupõe uma disposição em sistematizar as informações a que tem acesso, estudar a conjuntura, conjecturar, elaborar suas idéias e debatê-las com os demais. Nesse sentido, os encontros regionais podem ser definidos como espaços de educação popular em que se educam os próprios educadores, lideranças e pessoas de referência que retornam aos grupos da base renovados pela reconstrução dos saberes do movimento. Consideramos as ocupações de terra e de imóveis vazios momentos riquíssimos do processo de educação popular nos movimentos estudados, em que são postos à prova todos os pressupostos políticos e pedagógicos de atuação das lideranças. É preciso acreditar no que se está fazendo, ter convicção do sentido político da ação, construir esta convicção conjuntamente com as pessoas que estão participando a partir de uma constatação de que erradas são as injustiças que caracterizam as situações que estão vivendo. As relações de confiança que se estabelecem ali, entre os companheiros e no movimento, são terreno fértil para o início de uma fase de redescoberta da possibilidade de mudar, e de ampliação do repertório de formas de concretizar essa mudança. A ação exige de todos a compreensão da importância de sua participação nas discussões e na execução de tarefas, e reforça com isso a idéia de que cada um tem um papel a cumprir para que o movimento seja movimento, desmistificando o movimento enquanto personificação – como um ente que intervirá em nome de suas reivindicações. Nos trabalhos de base observados, as lideranças se mostraram agentes educadores muito afinados com as orientações de seus movimentos e com as preocupações que haviam elencado por ocasião de nossas conversas. Observamos sua atuação frente aos grupos, contando histórias e trazendo temas cotidianos para discutir até chegar a sua desnaturalização; apresentando as propostas dos movimentos e reafirmando a necessidade das pessoas, em fazendo a opção pelo movimento, assumirem o compromisso político da participação. Tanto nos grupos de origem como nos acampamentos, a ênfase maior do trabalho dos agentes educadores consistia em conseguir a regularidade da freqüência das pessoas às reuniões, através da criação de situações em que eram levados a perceber as razões políticas das necessidades pelas quais passavam, e da proposta de atuação também política, necessária para sua superação. Ao nosso ver, presenciamos um processo de educação politizadora, que procura distinguir a ação assistencialista da ação política, e despertar nas pessoas a disposição para a mudança, que envolve a contribuição de cada um para o coletivo. Passando dos espaços de militância nos movimentos às instâncias internas ao Assentamento e ao Mutirão, esferas em que se radicaliza a horizontalidade das relações entre lideranças e as pessoas dos assentamentos e mutirões, por serem as próprias coordenações compostas por assentados e mutirantes. Sobre as assembléias, é preciso dizer que ao longo do período compreendido pela pesquisa a freqüência e a qualidade da participação das pessoas foi bastante variável, no mutirão como no assentamento. Isso se deu devido a diferentes fatores, como o ritmo da construção e as pautas a serem discutidas. Para efeito de nossa análise selecionamos assembléias nos dois espaços que contaram com ampla participação das famílias, quantitativa e qualitativamente, para avaliar a postura dos coordenadores e coordenadoras e dos assentados e mutirantes. Nas duas ocasiões, pudemos observar o envolvimento de todos os presentes nas discussões, tanto na defesa e argumentações sobre as propostas encaminhadas, quanto nas conversas nos grupos formados para discutir os temas de pauta que antecederam as discussões e deliberações em plenário. Os coordenadores e coordenadoras tiveram um papel restrito, de apresentar os informes dos movimentos e introduzir cada ponto de pauta a ser tratado. Foram referencia do ponto de vista organizativo, dando início e ‘amarrando’ a seqüência das atividades desenvolvidas, sem imposições nem alterações de voz ou de humor. Nos momentos de votação foi solicitado inclusive o apoio da equipe de assessoria técnica para que as próprias coordenações pudessem se posicionar com tranqüilidade e isenção, sem influenciar os votos dos demais companheiros. Em todas as reuniões de coordenação observadas em ambos os casos percebemos uma preocupação genuína com a preparação das assembléias e reuniões de núcleo e de bloco. A discussão sobre os temas de pauta a serem tratados em assembléia visava à melhor apropriação dos mesmos pelos membros das coordenações, vislumbrando os argumentos possíveis para cada situação, e procurando verificar se as coordenações tinham consenso no posicionamento diante das questões – mesmo assim, nos casos em que houve consenso, a proposta foi apresentada como proposta da coordenação e submetida à assembléia, e não como deliberação a priori, o que demonstra por parte dos membros das coordenações uma clara noção de seu duplo papel, enquanto lideranças e como assentados e mutirantes, e que portanto não se furtariam a deixar claras as suas posições. Minha cabeça pensa onde meus pés pisamO Assentamento Comuna da Terra Dom Tomás Balduíno, oficialmente intitulado pelos órgãos públicos como Fazenda São Roque, está localizado no bairro Serra dos Cristais do município de Franco da Rocha, região norte da Grande São Paulo. A Fazenda tem como titular de domínio o Governo do Estado de São Paulo, que em 21 de julho de 2003 transferiu a administração do Imóvel para a Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania, com destino à Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo “José Gomes da Silva” – ITESP. Após 7 ocupações de terra e os respectivos processos de despejo, foi regularizado como assentamento em Franco da Rocha em 2003. Um amplo processo de discussão levou à divisão dos lotes por consenso, sem sorteios ou votações, seguido de nova luta para garantir condições para que as famílias permanecessem na terra, como subsídio de sementes e poços para abastecimento, e o crédito para construção das casas. O projeto de habitação foi elaborado participativamente, durante o período de dezembro de 2004 a dezembro de 2005, pelo grupo interdisciplinar de extensão universitária “Comuna da Terra”, da Universidade de São Paulo, sob orientação do Professor Reginaldo Ronconi. Desde então, recebe apoio técnico do Itesp para o setor de produção, e a assessoria da Usina – centro de trabalhos para o ambiente habitado para a adaptação do projeto e execução das casas. A comunidade do Assentamento Comuna da Terra Dom Tomás Balduíno é formada por 63 famílias oriundas de 6 núcleos de base, hoje distribuídas geograficamente em três núcleos de lotes: Núcleo Roxo, com 13 famílias; Núcleo Verde, com 28 famílias; Núcleo Vermelho, com 22 famílias. As famílias são compostas atualmente por 39 mulheres e 68 homens adultos, e 95 crianças; 39 meninas e 56 meninos. Durante cerca de dois anos, a semana do assentamento foi dividida entre os dias de produzir e os dias de construir. Uma pessoa de cada família contribuía com o trabalho mutirante para construção das casas em seu núcleo e cuida da produção de seu lote, além de participar das empreitadas coletivas de produção. A ciranda e a cozinha comunitária, nas proximidades da sede social do assentamento, são utilizadas atualmente somente em dias de assembléia, festividades ou outras atividades que demandam a participação de todos. O Mutirão Paulo Freire está localizado no bairro Inácio Monteiro, na subprefeitura de Cidade Tiradentes, zona leste do município de São Paulo. A Associação de Construção Comunitária Paulo Freire é vinculada ao Movimento Sem Terra Leste 1, filiado à União dos Movimentos de Moradia. Formada por famílias de 14 grupos de origem da zona leste de São Paulo, assinou o convênio para a produção de unidades habitacionais em 1999, indicando a assessoria técnica da Usina para elaboração do projeto e construção dos prédios e para a elaboração e desenvolvimento do trabalho social. Desde então, passou por um processo intenso de mobilização popular e pressões políticas para assegurar a terra, para aprovar o projeto dos prédios e para garantir cada liberação de verbas previstas no financiamento do Fundo Municipal de Habitação. As 100 famílias associadas são atualmente compostas por 169 adultos, sendo 62 homens e 107 mulheres. Entre as 157 crianças e adolescentes, 73 são meninas, e 84, meninos. A obra no mutirão funcionou durante 7 anos de segunda a segunda: durante a semana, com equipes de trabalho contratadas para funções específicas, aos finais de semana as famílias mutirantes assumiam o canteiro, orientadas por um mestre de obras e arquitetos/as. Os técnicos sociais foram responsáveis também pelo acompanhamento das obras, e pelo desenvolvimento de um Plano de Trabalho Social conjuntamente com a coordenação do Mutirão. Aos finais de semana, a obra começava as 8h15 e terminava às 17h, com pausas para o almoço e café. Além da divisão em 15 grupos de trabalho e 3 equipes de apoio – cozinha, creche e limpeza – foram designadas pessoas para a apontadoria e o almoxarifado. Ao longo do tempo, foram estabelecidos esquemas de rodízio para que um terço das famílias descansasse, enquanto dois terços trabalhavam, garantindo pelo menos um final de semana livre por mês para cada família. Foram entrevistados no assentamento Comuna da Terra Dom Tomás Balduíno: Maria (36), Jacira (31), Carlos (39), Mauro (47) e Piná (41); e no Mutirão Paulo Freire: Rose (46), Clemilda (45), Meire (34), Dora (36), Roberto (39). A partir das entrevistas, elegemos alguns dos temas mais recorrentes em suas falas para tecermos comentários. Falar sobre a persistência das pessoas com quem conversei e convivi é tarefa à qual não posso me furtar. E quando me refiro a essas, é porque sabemos que muitas desistiram no caminho; o desgaste e as dificuldades por que passaram ao longo destes anos todos é mencionado em alguns momentos das entrevistas, mas se multiplicarmos esses relatos pelas 163 famílias que compõem as duas comunidades, e que para além delas em cada um dos movimentos há milhares, dá o que pensar. Ao longo desses mais de vinte anos, desde a formalização dos movimentos a que pertencem os grupos estudados, têm-se verificado em maior ou menor grau a presença constante da igreja católica e da religiosidade cristã, como referências e em muitos casos, apoio real às organizações populares. Embora o apoio oficial tenha sido retirado, como conseqüência da hegemonia das tendências mais conservadoras da instituição, as referências ao apoio nos espaços da base dos movimentos estudados deixam claro que ainda há sacerdotes de alas mais progressistas que dentro de suas possibilidades continuam presentes na luta contra as desigualdades lá onde elas têm existência de carne e ossos, nos centros degradados e nas periferias distantes da Grande São Paulo. Nossa avaliação é de que essa presença não se opõe ao processo apresentado pelos movimentos de desnaturalização das condições em que vivem as pessoas que ingressam nos núcleos de base, na medida em que propõem, também, ao questionamento da sacralidade da ordem estabelecida por aqueles que a atribuem a uma predestinação ou a quaisquer desígnios divinos, além de contribuir para o cultivo de valores humanitários, desejáveis e em consonância com as bandeiras dos movimentos. A emancipação feminina pode ser observada através da participação nos movimentos populares sob diferentes aspectos. Uma análise superficial poderia nos levar equivocadamente a crer que, enquanto no mutirão as mulheres passam inevitavelmente por um processo de fortalecimento e de aumento de visibilidade social, enquanto no assentamento elas estariam relegadas ao papel de esposas dos companheiros que estão na luta. Se, no entanto, nos detivermos um pouco mais atenciosamente, perceberemos que a construção de relações de gênero mais igualitárias está presente em ambos os processos. Embora a grande maioria das mulheres não esteja presente nas obras de construção das casas do assentamento, nos dois espaços elas fazem parte da coordenação, e estão à frente dos projetos de produção coletiva, além de estarem presentes em todas as equipes de apoio – sem as quais, como sabemos, nada funcionaria. O reconhecimento do valor de sua participação nesses espaços, por sua vez, é algo que necessita ser lembrado e reforçado como conquista cotidianamente, para que não se cristalize como sendo apenas parte das obrigações do ser mulher. Nos casos estudados acompanhamos histórias emocionantes de resgate da dignidade e da construção da consciência de direitos, frutos da ação pedagógica de lideranças dos movimentos, que em seus erros e acertos não perderam de vista o compromisso de continuar aprendendo, a importância de corporificar exemplos, e a consciência do valor de cada um dos companheiros. Histórias como as que escutamos não são únicas, mas são poucas, diante de tantas outras que somadas, não sabemos ao certo como vão terminar. A oportunidade que encontraram de discutir corajosamente seus problemas, e coletivamente descobrir que esses problemas não eram seus, nos faz supor que os espaços dos quais participaram quando do ingresso nos movimentos foram ambientes educadores de fato, capazes de acreditar no potencial de reconstrução de pessoas que estavam socialmente marginalizadas, emocionalmente e psicologicamente arrasadas. Se por um lado isso reforça a tese de que as pessoas chegam aos movimentos por necessidade, esses exemplos nos mostram que as necessidades são diversas, e têm sua origem nas desigualdades sociais. Em cada um dos espaços, houve companheiros e companheiras que assumiram sua orientação sexuallivres de preconceito. Para eles/as, assim como para os demais, essa convivência com base no respeito à diferença significa muito, e representa um avanço no processo coletivo de mudança de valores – um processo político de humanização, no sentido da compreensão e da aceitação mútuas, e que não é espontâneo; precisa ser construído por todos e por todas. O difícil equilíbrio a ser alcançado entre a igualdade e a liberdade, entre o indivíduo e o coletivo, entre a vida que se leva e aquela pela qual se luta, só será possível na medida em que nas comunidades formadas a partir do processo coletivo de militância e de educação popular possa ressurgir o espaço da criatividade e do incentivo à expressão dos desejos de seus integrantes. No mutirão, como no assentamento, acompanhamos o processo de resistência duramente conquistado de se retardar a solução das necessidades imediatas de moradia, em nome da autonomia das comunidades de participar da elaboração dos projetos das casas e apartamentos nos quais as famílias vão morar. A diferença efetiva deste processo, nós só teremos condições de avaliar quando todos estiverem morando e produzindo; desde já sabemos que foi mais um aprendizado de que mudar é possível, e de que essa mudança depende da união e da participação de todos os que se dispuseram a entrar para a organização popular através dos movimentos populares. Após as entrevistas, conversamos com as coordenadoras do Assentamento e do Mutirão, respectivamente, sobre os limites e desafios da educação popular nos espaços da base dos Movimentos Populares. Suas respostas estão longe de serem idealizações, o que é alentador, pois demonstram a lucidez, a consciência de inacabamento de um processo que é contínuo e que não depende somente da mudança de modo de vida e de cultura política das pessoas que compõem essas singelos – e valentes comunidades. Em que ponto chegamos?A releitura do material coletado através da participação em campo representou o redescobrimento daquilo que sempre figurara em nosso imaginário como algo desejável: a construção de processos educativos democráticos como parte de um projeto de mudança política, agora como possibilidade, com existência material. Os discursos e as práticas de educação popular nos movimentos populares observados são orientados com vistas à construção de valores em consonância com aqueles defendidos por Paulo Freire ao longo de sua obra, a saber: o respeito ao outro, a desconstrução de fórmulas de convivência típicas da sociedade autoritária, a valorização do diálogo como fundamento da convivência e do processo educativo, a promoção da participação popular na definição de sua história; a recusa do autoritarismo, do assistencialismo e da doutrinação ideológica. No entanto, colocava-se à prova o sentido político de nossa atuação junto aos Movimentos Populares, tendo em vista que ‘as soluções conquistadas não eram universalizáveis’. Avaliamos que, se considerarmos os processos de formação como processos ativos, intencionais, por parte tanto das lideranças dos movimentos, quanto dos técnicos envolvidos com a execução dos projetos (de formação, de construção ou de produção) – e não como algo que se espera que aconteçanaturalmente, então não há como crer que seus frutos ‘apodreçam no pé’; interpretação catastrofista que implica na inevitabilidade da redução dos mutirões urbanos, ao fim do processo construtivo, a conjuntos de dormitórios de trabalhadores submetidos à lógica capitalista do assalariamento, dos assentamentos de reforma agrária a meros sítios com lotes de agricultura familiar para subsistência e das cooperativas a coletivos de auto-precarização. Caberia talvez pensar se essa expansão de fato é algo que só se concretizaria de forma institucional, através da mudança estrutural das políticas públicas e dos mecanismos de gestão; ou se o processo educativo de construção de um modo de ação e de vida coletivos dos mutirantes, assentados e cooperados que passaram por essas experiências constitui em si um caldo de cultura política que fermentará tais mudanças de maneira silenciosa e autêntica, podendo mais adiante nos surpreender a todos, resultando num modelo de sociedade mais próximo daquilo que buscamos… Não sei se estaremos vivos para saber quem tinha razão. Temos que admitir que essa cultura política, na prática, é algo dificílimo de se medir, mas é uma aposta que fazemos, no presente. É através da experiência da luta que observamos a construção do saber fazer pedagógico dos educadores e educadoras populares. Tendo diante de si a tarefa de informar, coordenar, apresentar propostas, distribuir tarefas, havia sempre mais de uma maneira de conduzir os trabalhos, e diversas foram experimentadas. Essa experiência, por sua vez, gerou ao longo do tempo a percepção do outro como um igual, trilhando os mesmos caminhos e ‘comendo do mesmo sal.´ Aos poucos, veio a reflexão de que este outro só poderia representar de fato um igual à medida que nele operasse o auto-convencimento da pertinência da luta, nada mais seria capaz de garantir sua participação e seu engajamento. Era preciso criar condições para que essa opção fosse de fato uma opção. Através da criação de um ambiente propício para o estabelecimento de relações dialógicas, os agentes educadores dos núcleos de base se permitiram não apenas a consciência do inacabamento de sua própria formação, pela possibilidade de se questionarem e serem questionados que os instigou a vontade de saber mais, mas também desmistificaram as certezas de uma fórmula ou projeto pronto a ser alcançado, passando a contribuir, através da experimentação, para a construção verdadeiramente coletiva de uma nova forma de viver. Quanto às minhas questões iniciais da pesquisa, “O que se está pretendendo – e o que se está construindo – com a educação popular nos movimentos populares hoje? As conquistas destes movimentos extrapolam as demandas por habitação, terra e trabalho?” Se por um lado observo na pesquisa em campo e nas leituras que posso responder afirmativamente, fica claro que ainda resta um aprofundamento sobre as questões específicas da metodologia para construir uma pesquisa mais consistente, para além dos casos estudados. Um dos desafios para o desenvolvimento de uma reflexão mais profunda sobre a educação popular nos movimentos populares é a dificuldade de encontrar bibliografia produzida nos últimos vinte anos especificamente sobre o tema. A busca por uma literatura atualizada e um diálogo mais amplo sobre o tema da metodologia na educação popular será certamente um objetivo a ser adotado para continuar a investigar até onde a educação popular pode ser considerada como um instrumento da formação de organizações populares participantes e protagonistas do processo de mudanças radicais da sociedade.
Percassi, Jade Referências BibliográficasAlvarez, Sonia; Dagnino, Evelina; Escobar, Arturo (2000). Cultura e Política nos Movimentos Sociais Latino-Americanos. Belo Horizonte: EUFMG. Beisiegel, Celso de Rui (1982). Política e Educação Popular. São Paulo: Ática. Bonduki, Nabil (1996). A origem da habitação social no Brasil. São Paulo: Nobel. Brandão, Carlos Rodrigues (1987). Repensando a pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense. __________(1983) Pesquisa Participante. São Paulo: Brasiliense. __________ (1980) A questão política da educação popular. São Paulo: Brasiliense. Caldart, Roseli Salete (2000). A pedagogia do Movimento Sem Terra. Petrópolis: Vozes. Cândido, Antônio (1998). Os parceiros do Rio Bonito. São Paulo: Duas Cidades. Chaui, Marilena (1986). Conformismo e resistência. São Paulo: Brasiliense. Freire, Paulo (1996). Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à pratica educativa. São Paulo: Paz e Terra. __________(1987). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra. __________ (1976) Educação como pratica da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Gohn, Maria da Gloria (2001). Educação não-formal e cultura política: impactos sobre o associativismo e o terceiro setor. São Paulo: Cortez. __________ (1992). Movimentos Sociais e Educação. São Paulo: Cortez. [1] Título análogo ao da dissertação de mestrado apresentada e defendida em junho de 2008 como atividade do Curso de Formação de Educadores Populares na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. |