Beneficiários da faixa de menor renda do programa Minha Casa, Minha Vida contam suas histórias e mostram que o sentimento de realização é bem maior que o sonho da moradia
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“Só de me deitar à noite e não ter de pensar nos R$ 950 que seriam pagos no aluguel já faz muita diferença. Hoje minha filha pode fazer e pagar com o trabalho dela a faculdade de design gráfico, sem se preocupar que vai faltar pro aluguel. Eu posso levar minhas netas para passear, posso pensar em móveis pra minha casa. É viver num sonho. Nem caiu a ficha ainda”, conta a merendeira Maria José Cardoso da Silva, que trocou o Ceará por São Paulo há 30 anos. Desde maio, ela mora no apartamento 26 do Conjunto Habitacional Iracema Eusébio, do programa Minha Casa, Minha Vida, no centro de São Paulo. “Faz só cinco meses, mas já melhorou tudo”, diz.
Até o início do ano, Maria José pagava aluguel na Mooca, na zona leste paulistana, onde vivia com as três filhas em um quintal com mais cinco famílias. Antes, morava com o marido em uma pequena casa na periferia de Guarulhos, na região metropolitana, que foi vendida depois de se separarem. O dinheiro, no entanto, era insuficiente para dar entrada num novo imóvel. “Fomos para o aluguel. Só que fica impossível você juntar algum dinheiro, ganhando pouco e pagando muito. Achava que ia ficar pra sempre assim, por que a gente não consegue entrar em financiamento de casa. Daí, em 2008 eu conheci o movimento e fui pra luta”, lembra.
O movimento é a Unificação das Lutas de Cortiço e Moradia (ULCM). E não foi uma casa “ganhada”, como muitos acreditam. Foram oito anos participando de reuniões entre famílias e o poder público, indo a manifestações e participando de ocupações em prédios na região central. O edifício onde hoje está o conjunto habitacional pertenceu e abrigou o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
Para receber as famílias, contempladas pela modalidade Minha Casa, Minha Vida Entidades, o edifício passou pelo processo de retrofit, uma reforma estrutural que modifica a destinação do local. São 72 apartamentos em 13 andares, com elevadores e monitoramento por câmeras. As unidades têm 30, 43 ou 51 metros quadrados. Maria José conseguiu uma de 30.
O tamanho não é problema para ela, que hoje vive com a filha caçula, Samantha. “Agora nós temos condições de planejar. Vamos pensar em cada ambiente, cada móvel, cada decoração. Esperei muito, agora vai ficar do jeito que eu penso. Só pelo acabamento, os azulejos, já é lindo”, afirmou. O apartamento tem poucos móveis, o essencial para a vida de mãe e filha. O orgulho se completa pelo fato de morar ao lado do Teatro Municipal. “Olha só a vista que eu tenho da minha janela. Todo dia eu olho o teatro e penso que nunca imaginei isso pra mim.”
A prestação adequada às condições socioeconômicas da família faz toda a diferença. Na Faixa 1 e na modalidade Entidades do programa, que atende famílias com renda de até R$ 1.600 per capita, o valor da prestação não pode ultrapassar o limite de 5% da renda familiar – nem do teto de R$ 270. Em contratos de aluguel, até 30% da renda pode ser comprometida. Com isso, a merendeira sentiu um impacto significativo: queda de R$ 900 para cerca de R$ 100 no gasto mensal com a moradia. “Na vida do pobre, um dinheiro desse faz uma diferença que, meu Deus…”
Na Faixa 1, o beneficiário pode ter subsídio de até 90% do valor da moradia. O governo federal, por meio da Caixa Econômica Federal, investe R$ 76 mil em cada unidade habitacional. O governo estadual ou municipal, dependendo do convênio, mais R$ 20 mil. O morador paga o restante em até dez anos. Na capital paulista, a gestão do prefeito Fernando Haddad (PT) efetivou uma parceria com o governo estadual (PSDB) para incrementar com mais R$ 20 mil por unidade os empreendimentos construídos na cidade.
Déficit histórico
O Brasil tem uma história longa de valorizar e estimular a aquisição da casa própria. No entanto, as oportunidades, sobretudo para a população de baixa renda, sempre foram escassas. Entre 1930 e 1964, houve um ciclo de obras financiado pelos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs) de algumas categorias de trabalhadores. Os cadastros para moradia nos municípios são conhecidos pela longa espera, muitas vezes sem conclusão. Em 2009, no segundo mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi criado o Minha Casa, Minha Vida. A Faixa 1 do programa e a modalidade Entidades levaram não só à conquista da moradia, mas a uma melhoria em cadeia na vida das pessoas, com mais espaço no orçamento para investir em educação, lazer, aquisição de bens e uma reviravolta na autoestima.
Cinco andares acima de Maria José vive a representante comercial Maria Verônica de Souza Nascimento. São conterrâneas. As trajetórias de vida foram distintas. Verônica não tem filhos, e desde que chegou em São Paulo, há 19 anos, sempre morou na região central. Mas o impacto do programa na vida é semelhante. “Agora eu estou pagando pela minha casa e com melhores condições de vida. O aluguel penaliza muito a gente, é um dinheiro mal gasto. Tenho poucos móveis ainda, porque quero me planejar bem, fazer tudo com calma. Já coloquei um espelho grande no banheiro, porque sempre sonhei com isso e quis fazer logo”, diz.
Antes, Verônica era casada e morava em um uma casa de um cômodo, em um cortiço na Bela Vista, em que várias famílias dividiam um único banheiro. O aluguel de R$ 600 consumia um terço da renda familiar. “Durante um tempo eu fiz bicos vendendo cerveja aqui pelo centro, fora do horário de serviço, porque a situação era muito difícil”, conta. Em 2008, ela se associou ao movimento. O ex-marido, porém, não acreditou. Parte da família dela também não. Hoje, a prestação da casa própria é de R$ 70. “Isso é muito legal. O aluguel não tem essa preocupação com a pessoa. A vida financeira melhorou e posso dizer que vivo bem.”
“Se essa faixa acabar, vai prejudicar muita gente. Quem ganha pouco não tem como juntar nada, nem pode ingressar em financiamento de banco. Tem muita gente ainda esperando uma oportunidade como essa”, afirma Verônica, que diz nunca ter sequer tentado adquirir uma casa por financiamento. “Não é pra mim.” Hoje, avalia a possibilidade de fazer faculdade, depois que terminar de mobiliar a casa nova.
Programa suspenso
Em dezembro de 2014, o programa Minha Casa, Minha Vida atingiu a marca de 3,76 milhões de moradias contratadas ou construídas. Os investimentos chegaram a R$ 244 bilhões. A modalidade Entidades respondeu por cerca de 2% do total. Na zona urbana, o programa é dividido por três faixas de renda mensal: até R$ 1.600 (Faixa 1), até R$ 3.100 (2) e até R$ 5 mil (3). Na área rural, as faixas são anuais: até R$ 15 mil, até R$ 30 mil e até R$ 60 mil. A nova contratação – terceira versão do programa – deveria ter sido lançada em 2015.
Após vários adiamentos, o Minha Casa Minha Vida 3 foi lançado em março pela presidenta destituída Dilma Rousseff (PT), com meta de construir mais 3 milhões de moradias. Dois meses depois, o presidente Michel Temer (PMDB) suspendeu o programa. Em agosto, anunciou a contratação de 40 mil unidades, mas até agora nenhuma contratação foi efetivada.
“Vai ser um problema muito grande. Nosso movimento tem mais 3.800 famílias necessitando de moradia. Fora as outras organizações e as pessoas que não são ligadas a movimento nenhum. É gente que chega a passar necessidade, porque o aluguel é muito pesado. Esse programa não pode parar”, defende a trabalhadora autônoma Ivete Leão dos Santos, coordenadora da União Nacional por Moradia Popular em Salvador. Ela foi beneficiada com um apartamento pelo programa Minha Casa, Minha Vida, no bairro de Cajazeiras, região norte da capital baiana, onde vive com o marido e uma filha.
Ivete já havia experimentado os efeitos colaterais positivos, quando passou de contar moedas no final do mês para fechar as contas da família e pôde entrar no curso de Serviço Social. “Na verdade, posso dizer que a realização de um sonho levou à realização de outro. Não ter o peso de um aluguel ou prestações altas me deu possibilidade de estudar”, afirma.
O empreendimento, com quatro andares, construído em 2013, abriga 20 famílias. A unidade tem 44 metros quadrados, com dois quartos, sala, cozinha, banheiro e área de serviço. “É um prédio lindo. O apartamento não deixa nada a desejar para um desses financiados por banco. É bem acabado, bem planejado”, descreve Ivete, que batalhou cinco anos pela conquista.