O golpe parlamentar-jurídico-midiático que abalou o Brasil em 2016 parece já ter entrado para a história como mais uma “conciliação”, um acerto entre as elites para perpetrar no poder os grupos historicamente dominantes do país. A palavra “golpe” já é vista como radicalidade pelos membros da intelligentsia brasileira, que conseguiram fazer passar a ideia de que era “um mal necessário”. A não ser que as novas gerações não sejam tão bobas quanto parece pensar a velha classe política, e não se deixem engambelar tão facilmente quanto se crê. A ver.
Por enquanto, a “luta contra a corrupção” ganhou novo patamar, graças em parte à postura menos parcial de Facchin, e re-embaralha as cartas, uma vez que toda a velha classe política, incluindo-se parte da dita intelligentsia, está ameaçada. O projeto dessa “limpeza”, cada vez mais claramente, é o surgimento de políticos “puros” e salvadores da pátria, oriundos de setores do judiciário, talvez encabeçados pelo próprio Moro, que trarão “novos ares” ao nosso cenário político. A não ser que o próprio judiciário, assim com a mídia, também caiam no caldeirão das denúncias, o que já é menos provável, mas possível.
O único fato manifestamente claro de tudo isso é que se sacou do poder um governo talvez confuso e inábil politicamente, talvez atirado na questão dos gastos públicos, mas indubitavelmente de esquerda. Ao menos dentro do que parece agora ter sido possível “ser de esquerda” no Brasil. Com isso tudo, a grande vitória que o conservadorismo vem obtendo está na retirada implacável dos direitos duramente conquistados desde a constituinte, e acelerados na chamada Era Lula. As elites que sonegam mais de R$ 400 bi por ano não foram incomodadas, nem os bancos que praticam as taxas mais abusivas do mundo, muito menos as grandes fortunas que não são taxadas, ou ainda o dinheiro que escorre ilegalmente a cada dia para o exterior. Não, os “culpados” por tudo são mesmo os brasileiros pobres. E também os de classe média, mas esta ainda não parece ter percebido que é ela na verdade quem está, agora e não antes da queda de Dilma, pagando o pato que a FIESP tanto propagandeou (com dinheiro público, soube-se).
Dentre os incontáveis retrocessos ocorridos, um deles, o do Programa Minha Casa Minha Vida, passa quase despercebido. Afinal, a falta de moradia “não é um problema”, exceto para os que não têm casa, que é quem menos importa. Essa multidão invisível vai pagar caro pelo golpe e pelas mudanças na política habitacional de Lula e Dilma, mas ninguém realmente parece estar muito preocupado com isso. Esse programa, lançado por Lula em 2009 como resposta à crise econômica (pois a construção civil é capaz de segurar o PIB do país), tinha o objetivo inicial de produzir um milhão de casas. Fez mais do que isso, chegou a cerca de 4 milhões de unidades (3,76 mais exatamente), mas recebeu muitas críticas por parte dos arquitetos e urbanistas. Elas se devem à dificuldade de se implementar, em mais de 5.500 municípios pelo Brasil todo, extremamente diversos, um mesmo programa de financiamento habitacional. Um tanto pelo fato de ser um programa extremamente condescendente com o mercado da construção civil (a questão é que não seria possível combater um déficit de 6 milhões de unidades sem ser com o mercado da construção), um tanto por não poder constitucionalmente regular o uso e a ocupação do solo, que são prerrogativas municipais, e um outro tanto pela ausência (omissão?) notável nessa discussão dos arquitetos e urbanistas, enquanto corpo profissional, ele de fato gerou problemas de urbanização que irão gerar um passivo urbano e ambiental consequente.
Mas deve ser dito que o Programa vinha evoluindo, e muito, nos governos Lula e Dilma, chegando, pouco antes do golpe, à sua terceira versão, sempre tentando amenizar os problemas e criar obstáculos para a ação as vezes desenfreada dos municípios no território. Mais importante, esse programa, pela primeira vez, conseguiu fazer a moradia chegar à população realmente pobre. Por dependerem do retorno dos investimentos por meio do pagamento pelos beneficiados, programas anteriores nunca haviam de fato conseguido atingir a população ganhando menos de 3 salários-mínimos. O MCMV conseguiu, ao subsidiar a casa para os mais pobres, colocando quase R$ 100 bilhões em investimentos sem retorno. Para as famílias removidas de obras de urbanização em áreas precárias do PAC, a casa era dada sem nenhum custo para o beneficiário. O Programa avançou em detalhes como o atendimento prioritário a mulheres chefes de família, a obrigatoriedade de acessibilidade, de aquecimento solar nos conjuntos de casas térreas, e assim por diante. Também destacou-se por abrir espaço e institucionalizar – por meio da modalidade “Entidades” – a produção autogestionada, uma tradição no Brasil, e que há anos vem sendo a referência em qualidade de projeto. Além disso, o programa criou um financiamento para um setor antes ignorado pelo mercado imobiliário e da construção civil, de classe média-baixa, que com isso drenava para si os recursos de políticas para os mais pobres. No fim, de toda a produção, cerca de 30% foi destinado à faixa de renda muito baixa, um fato inédito no Brasil.
Entretanto, como se sabe, desde que a direita resolveu não aceitar a derrota democrática para Dilma Roussef em 2014, tornou seu governo ingovernável. E, por isso, os recursos para o MCMV já vinham se tornando escassos e, desde 2015, o programa vinha funcionando em ritmo lento. Mas, depois do golpe, ele praticamente cessou. Como não há mais dinheiro do programa federal (nem mesmo para os aliados da direita, ao que parece), até mesmo uma cidade com o porte e o poder de São Paulo teve que anunciar metas quase insignificantes na área habitacional, se não obtiver os recursos federais: 6.663 unidades, que mesmo que sejam viabilizadas, representariam cerca de 8 vezes menos do que aquelas viabilizadas na gestão anterior. Assim, a dependência em relação ao programa federal é total.
Por essa razão, o Ministério das Cidades apressou-se em publicar, em 24 de março de 2017, duas portarias e uma instrução normativa que dão início ao que se anuncia como um novo conjunto de contratações pelo Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), que supostamente envolverá 100.000 moradias, na modalidade Empresas, 35.000, na modalidade Entidades, e 35.000, na modalidade Rural. Vê-se que, com um total de 170 mil unidades para todos o Brasil, a expectativa é quase insignificante perto do que já se produziu pelo programa, dando a dimensão da real importância que a questão da moradia tem para esse governo. Para se ter uma ideia, só no Município de São Paulo, para se dar uma resposta que comece a ser efetiva para o déficit habitacional,beneficiando a população em situação mais emergencial, seria necessário produzir ao menos 350 mil unidades. O ministério também publicou uma portaria que altera diretrizes e especificações de projeto para o programa. Os três primeiros instrumentos, alardeados como um reinício triunfal do programa (apesar dos números pífios), contêm, entretanto, alguns dispositivos bem questionáveis.
As portarias de números 267 e 268 regulamentam o processo de seleção de empreendimentos, respectivamente, das modalidades Empresas e Rural, e a Instrução Normativa nº 14 regulamenta a seleção de empreendimentos da modalidade Entidades. Esses três instrumentos relacionam quais serão os critérios de seleção. Mas estranhamente não indicam quais serão os pesos que terão cada um desses critérios. É como se o edital de um concurso dissesse que haverá prova objetiva e de títulos, mas sem publicar os pesos que terão as várias disciplinas que comporão a prova objetiva e o peso da prova de títulos.
Dessa forma, as entidades e empresas que apresentarão propostas só poderão saber por quais critérios, de fato, suas propostas foram avaliadas depois de concluída a seleção. Ou seja, ficará para o Ministro das Cidades a definição (ou seria melhor dizer “manipulação”?) “a posteriori” dos critérios! O Ministério Público Federal e Tribunal de Contas da União, tão diligentes quando se trata de governo de partidos que se opõem ao atual, não se manifestarão agora?
O governo vem dando sequência à sua tentativa de escantear os movimentos de moradia, historicamente comprometidos com a questão, e base para uma política organizada e participativa de produção habitacional. Não que o governo Lula-Dilma estivesse dando carta branca a esses movimentos. Pelo contrário, a modalidade “Entidades” do MCMV pôde produzir, até a saída de Dilma, não muito além de 1,5% da produção total, esta amplamente favorável à modalidade empresarial. Mas ao promover o “Entidades”, o Governo Lula-Dilma deu espaço para os movimentos de moradia, autogestionados, produzirem casa. Se isso por um lado reforçou e empoderou uma velha tradição, a dos mutirões autogeridos, que vinha desde a década de 80 e é internacionalmente reconhecida, por outro, atiçou a raiva dos conservadores que só sabem enxergar a mobilização popular pela lente do preconceito. Assim, Governo Federal e Ministério Público iniciaram, com apoio indisfarçado da mídia (leia aqui) e no impulso do movimento golpista, esforço para criminalizar os movimentos sociais de moradia.
Por isso, não causa estranheza que, nos detalhes técnicos da nova proposta do MCMV, estejam escondidas pequenas manobras que dificultam a vida das entidades. Por exemplo, para contratar após a seleção, a exigência de prazo para as empresas é bem menor do que a exigência para as entidades: as primeiras terão 180 dias e as últimas 90 dias, sendo que a documentação que ambas têm que providenciar é praticamente a mesma. Os processos de seleção também trazem a novidade de permitir que concorram, entre si, propostas de entidades que não tenham projetos já desenvolvidos e propostas que tenham projetos concluídos e licenciados. Dessa forma, há grande probabilidade de que projetos já em condição de início imediato da obra sejam preteridos por propostas que não avançaram além do estudo preliminar. Isso é uma perseguição explícita às entidades que já vinham trabalhando no governo anterior, conseguindo terras (muitas vezes em negociações com os municípios), elaborando projetos arquitetônicos, providenciando as licenças, etc. Todo esse trabalho arrisca ser jogado fora, pois ele pode não valer mais de nada.
Há um grande número de projetos aguardando seleção/contratação há anos e que, para serem produzidos, exigiram grande esforço e gastos pelas entidades. Em junho de 2016, já após o golpe, o Ministério das Cidades publicou a Portaria nº 258 em que se comprometia a selecionar (e depois contratar) 6.250 UH, dentro de um conjunto de empreendimentos que somavam mais de 40.000 UH. De lá para cá, o número de projetos que foram recebidos pela CAIXA e/ou tiveram sua conclusão aprovada por aquela instituição não parou de crescer e deve estar ultrapassando as 170.000 UH. Entretanto, nem aquelas 6.250 prometidas chegaram a ser contratadas. E arrisca acontecer de novas propostas – dentro das novas 35 mil prometidas –, sequer com projeto realizado, sejam aprovadas na frente dessa enorme fila. Um caminho aberto para favorecimentos a “entidades amigas”, que os golpistas adoram insinuar ter sido prática do governo legítimo, quando até então vinha-se aperfeiçoando um sistema por pontuações bastante criterioso.
Ainda no sentido de complicar a vida das entidades, a Resolução 214, que era de dezembro de 2016, já havia dificultado a Compra Antecipada (CA) e a contratação direta com as entidades (pessoas jurídicas), priorizando a contratação com os beneficiários (pessoas físicas). Isso tende a criar obstáculos para a contratação dos projetos junto à Caixa, pois para contratar com pessoas físicas, as unidades já devem estar com as matrículas individualizadas. Para isso, se forem prédios, será preciso incorporar antes de contratar; se forem casas, será preciso fazer o parcelamento do solo, também antes de contratar. Ou seja, um enorme e longo processo burocrático, com muito custo para as entidades e muito risco para os proprietários de terrenos, que uma vez individualizada, se por algum motivo a contratação não acontecer de fato, o proprietário não terá mais a gleba única para comercializar. É de se esperar, com isso, um recrudescimento das dificuldades de se encontrar terras para o programa, e o aumento especulativo do preço das mesmas.
As mudanças que detalharemos são muitas, estão nos pormenores, nas entrelinhas. Em aspectos de decisões técnicas que o leitor que não seja muito interessado pela questão não terá provavelmente a paciência de ler até o fim. Isso faz parte da estratégia. E assim vão sendo feitos os retrocessos em todas as áreas, na saúde, na previdência ou, por exemplo, na normativa sobre a regularização fundiária, que o governo quer alterar por meio da MP 759. A população precisa ser especializada em tudo para poder acompanhar o que está sendo feita com ela, o que é impossível. Daí a importância de cada um, em sua área, fazer a devida fiscalização. Seguimos então, para quem se dispuser a continuar.
Uma outra alteração no programa, esta na modalidade Empresas, é a extensão do atendimento a todos municípios, não mais valendo a exigência de que o município tenha população igual ou superior a 50.000 habitantes. Essa alteração viabilizará o atendimento aos municípios menores, mas traz o risco de que esses atraiam mais empreendimentos e que se reduza, assim, a oferta nas metrópoles e nos municípios maiores, que é onde mais se concentra o deficit habitacional. Isso porque nos municípios de menor população tende a ser mais fácil para as empresas a obtenção de terras e a aprovação de projetos. Essa distorção já vinha ocorrendo há tempos no MCMV, e deveria ser melhorada, e não piorada. Na prática, acentua a ideia de um programa cuja preocupação maior é favorecer as empresas, não importando se elas produzem onde é realmente necessário para a política habitacional e a redução do deficit.
Esse risco de haver uma migração das empresas no sentido das cidades menores, pode se somar a outra muito provável migração: a de empresas que atuam na Faixa 1 para as Faixas 1,5, 2 e 3. Isso porque, em fevereiro de 2017, o governo ilegítimo elevou os valores que paga pelas moradias construídas para essas três últimas faixas, mas manteve os valores da Faixa 1. Como o padrão e a localização das unidades das Faixas 1,5, 2 e 3 não é muito melhor do que os da Faixa 1, é muito razoável prever que as empresas, pelo mesmo preço da terra e com custos de construção praticamente semelhantes, prefiram produzir nas faixas em que receberão mais. Ou seja, a política prejudica diretamente os mais pobres, que deveriam ser o foco prioritário de qualquer programa habitacional.
As Portarias 267 e 268 e a Instrução Normativa nº 14 também foram propagandeadas, louvadas como se estivessem trazendo novos e melhores parâmetros de qualidade aos empreendimentos. Como foi dito, os critérios de seleção de empreendimentos não serão conhecidos durante o processo, mas é de se esperar que sejam priorizados os empreendimentos situados em municípios com maior deficit habitacional e com menor oferta pelo PMCMV, e em áreas mais bem situadas nas cidades. Esses são critérios de fato positivos, mas não têm nada de novo. Já estavam definidos desde 2016, pela Instrução Normativa nº 9, de 28/04/16 (Entidades) e pela Portaria nº 158, de 06/05/16 (Empresas), antes de consumado o golpe contra Dilma Roussef. Ou seja, a qualidade, que se diz que será introduzida e é propagandeada, não é nenhuma novidade na regulamentação do PMCMV.
A Portaria nº 269, publicada em 24/04/17, que estabelece diretrizes e especificações para projeto, também é apresentada como instrumento para se buscar projetos e obras de melhor qualidade. Mas, em vários e importantes aspectos, significa um retrocesso em relação à Portaria nº 146, de 26/04/16, que por ela foi revogada. Uma das mudanças mais importantes foi a redução da área mínima dos apartamentos de 41 m², como era definida em abril de 2016, para 39 m², como está definida em abril de 2017. E isso sem que houvesse uma redução dos valores a serem pagos pelos apartamentos. Se o tamanho de 41m² para dois quartos e sala já é, do ponto de vista arquitetônico, escandaloso, o que dizer de 39m²? Vale lembrar que as entidades, que não trabalham pelo lucro, vêm conseguindo fazer, com o mesmo financiamento, apartamentos de mais de 60m².
A limitação para a área e comprimento das quadras é um dos aspectos fundamentais para a qualidade dos projetos, pois é crucial para a integração do empreendimento com a cidade, para a mobilidade e para evitar grandes extensões muradas, que implicam em maior insegurança para quem anda, espera ônibus, etc. pelas áreas externas ao empreendimento e também facilitam o domínio da área interna por milícias, como já ocorreu em alguns casos. A Portaria nº 146, de abril de 2016, estabelecia que, no máximo, as quadras teriam 25.000 m² de área e 200 m de comprimento. A Portaria nº 269, que a revogou, prevê as mesmas dimensões (25.000 m² e 200 m), mas apenas nos casos em que não houver legislação municipal que disponha sobre essas dimensões. Dessa forma, abre-se uma enorme brecha: se a legislação municipal permitir o dobro ou mais dessas dimensões, elas serão aceitas. Como se observa que nesse programa, os acordos entre prefeitos e empreendedores são comuns, é de se esperar uma proliferação de decisões municipais que favoreçam grandes empreendimentos superdimensionados, sem que o programa possa impedir.
A mesma lógica se aplica a outro importante parâmetro de qualidade urbanística, a definição de larguras de vias. A Portaria 269/2017 manteve as larguras adotadas em 2016 mas, como no caso anterior, também com a ressalva de que serão aplicadas apenas nos casos em que não houver lei municipal específica. Isso fragiliza ou mesmo torna inócuos os dispositivos, pois o deixa na dependência de existirem ou não leis municipais sobre o assunto, leis que podem ser mais lenientes, menos restritivas do que a norma federal. Observe-se que não se trata de uma questão legal, pois a norma federal poderia ser mais restritiva que a lei municipal.
O Ministério das Cidades havia avançado em estabelecer esses parâmetros e agora retrocede. Contribui para reforçar o poder de pressão principalmente de empresas sobre prefeituras, pois será difícil que municípios menos estruturados resistam à pressão de empresas querendo construir em seu território e que tenham acesso a recursos do Ministério. Para as empresas, que ganham pelo número de unidades habitacionais (UH) construídas, é muito mais interessante aumentar ao máximo o tamanho das quadras e reduzir ao mínimo a largura das vias, pois, dessa forma, têm mais espaço para construir mais UH e podem reduzir seus custos com a implantação de vias. A pressão não será pequena, já que tudo pode depender (apenas) de uma legislação municipal. Isso também favorece o deslocamento da produção para cidades menores, onde o deficit não é tão importante, já que nas grandes cidades as leis municipais são geralmente mais consolidadas (em Planos Diretores, Leis de Zoneamento, etc) e difíceis de se alterar. Em contrapartida, é fácil de prever – até mesmo porque ela já ocorre – a complacência de muitos municípios em relação a chegada de empreendimentos que representam aquecimento econômico e votos (e às vezes também melhorias urbanas e sociais) e sua propensão a ceder a pressões para “flexibilizar” normas urbanísticas, ajudando na proliferação de condomínios horizontais fechados que recortam a cidade com seus imensos muros. É verdade que a Portaria nº 269 prevê que os empreendimentos sejam contornados por vias públicas (Item 2.4.1 do Anexo I), o que melhora um pouco o problema, porém, sua aplicação, já de saída, é adiada para 2018 (Item 2.6 do Anexo I), após um bom número de contratações se consumarem. Tarde demais, portanto. Mesmo assim, quando vier a ocorrer, o texto impreciso permite entender que em municípios de população igual ou superior a 100.000 habitantes, só precisarão ser contornados por vias empreendimentos acima de 500 unidades (não valendo, portanto, para aqueles, por exemplo, com 499).
A limitação do porte dos condomínios em 300 moradias é outro item importante. Esse parâmetro já havia sido adotado em 2016 e permaneceu em 2017. É um parâmetro que deveria ser reduzido, pois grandes condomínios, como os de 300 UH, são mais difíceis de administrar e aumentam despesas que recaem sobre os seus moradores, como as de limpeza, jardinagem, manutenção de redes internas de eletricidade, iluminação, água, esgoto, drenagem de águas pluviais, despesas que, em condomínios menores, em boa parte são assumidas por prefeituras e por concessionárias de serviços públicos. Para uma comparação: a CDHU-SP, adota condomínios de, no máximo, 160 apartamentos e não admite condomínios horizontais, porque condomínios de apartamentos trazem menores prejuízos para as cidades do que os condomínios de casas, considerando empreendimentos de mesmo número de UH. Lamentavelmente, a Portaria 269 não veda os condomínios de casas (que são responsáveis por um dos aspectos mais negativos do PMCMV), apenas diz que o “parcelamento de glebas para a implantação de empreendimentos de unidades unifamiliares deverá ser feito preferencialmente na forma de loteamento” (item 2.10).
É verdade que há, para sermos honestos, uma mudança que pode ser positiva na Portaria 269, publicada em 24/03/17: a fixação do limite para o porte dos empreendimentos em 500 unidades habitacionais, admitindo-se, no máximo, agrupamento de 4 empreendimentos. Entende-se por “agrupamento” um conjunto de empreendimentos que estejam situados a menos de 1 km uns dos outros; e tenham sido contratados ou implantados pelo PMCMV há menos de 5 anos. Isso de fato tende a reduzir o impacto causado pelo aumento muito rápido da demanda por serviços e equipamentos nas regiões dos empreendimentos, e ainda tende a conter aqueles mares de casinhas ou predinhos que infelizmente têm marcado grande parte dos conjuntos habitacionais do MCMV. Mas, por outro lado, essa mesma regra tende a dificultar empreendimentos nas maiores cidades, onde as entidades têm optado por glebas maiores a serem parceladas, que têm preços mais acessíveis e compatíveis com os valores do programa. Esse aspecto da questão não foi, portanto, previsto.
Como se vê, o retrocesso vem pelas entrelinhas, nos pormenores. Neste caso, afeta o mais importante programa habitacional já feito no país, que pela primeira vez atendeu, com subsídios a fundo perdido, os verdadeiramente mais pobres, apesar de todos os defeitos que se possa achar nele. Está sendo contido, formatado, no sentido de dar-lhe a feição do antigo BNH: o de atender efetivamente não os mais pobres, mas a população com renda acima de R$ 1.800,00, que é a faixa que o Governo Federal parece querer agora priorizar, em detrimento da Faixa 1, que atende a população com renda entre R% 0 e 1.800,00. Como em outras áreas, estamos vivendo terrível retrocesso. Não se pode deixar que ocorram sem que haja ao menos algum tipo de questionamento. Espera-se, sobretudo, que o Brasil não se deixe levar de vez para o obscurantismo.
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